GARANTIAS DO CONSUMO
Por Vitor Hugo do Amaral Ferreira
A obra Os Miseráveis, do escritor francês Victor Hugo, é um clássico da literatura, contextualizado à queda da monarquia francesa, em que se relata questões de ordem política e social no período pós-Revolução Francesa. O protagonista do texto, Jean Valjean, é um sujeito desempregado, que rouba um pedaço de pão para alimentar os sobrinhos e sofre a condenação a trabalhos forçados. O cenário que ambienta o enredo revela o desamparo aos mais pobres e faz do texto referência ao tema da desigualdade social e proteção aos vulneráveis até os dias de hoje.
Publicada em 1862, poderia descrever facilmente a nossa contemporaneidade, em especial, após a publicação do Decreto 11.150/2022, que, ao negar a definição de um valor minimamente digno para se viver, reforçou a miserabilidade existencial de um país empobrecido, caracterizado como a “pátria dos superendividados” [1].
Da invenção do dinheiro, aproximadamente há 3.000 anos, a humanidade tem se esforçado, disputado, matado e morrido para acumulá-lo, fossem barras de ouro, moedas de prata, cobre, ou cédulas de papel. O dinheiro nunca foi um instrumento passivo, durante séculos, a história narra prazeres e sofrimentos no ganho e perda de valores em dinheiro [2]. O crédito não se confunde à moeda, ainda que intrinsecamente associados, e se a confiança está presente ao signo dado ao papel como valor (dinheiro), mais evidente é o sentido de confiar ao conceito de crédito. Nas lições de Claude-Frédéric Bastiat “dar crédito é dar tempo” [3] e dar crédito equivale-se a dar confiança, depositar no tempo a crença de retorno. Onde há crédito existe confiança, mas neste silogismo: há confiança sempre onde há crédito?
Ao processo histórico do crédito, fica nítida a condenação pelas fontes eclesiásticas, a partir do repúdio à usura, uma vez que o crédito representava também juro. A democratização do empréstimo, em modelo de financiamento primário destinado às atividades profissionais (crédito à produção), fomentava, de forma especial, a agricultura. Esse foi o perfil do crédito por muito tempo, até que passou a atender também a falta excepcional de liquidez e, ao ser massificado, atingiu a todos (crédito ao consumo). Ampliou o acesso, potencializou o risco e consequentemente criou um maior número de devedores. Em síntese, são quatro as fases da evolução histórica do crédito: 1) a negação religiosa; 2) crédito à produção; 3) crédito ao consumo; e 4) superendividamento [4].
Entre os pioneiros a tratar do tema no Brasil, com menção ao superendividamento, tem-se José Reinaldo de Lima Lopes [5]. O autor oferece a primeira reflexão sobre o assunto, ao anunciar que as disposições sobre crédito e o superendividamento já vinham sendo tratadas em legislações estrangeiras. Nota-se que já se abordava os contratos de crédito na legislação brasileira, assim como os estudos do sistema financeiro diante do Código de Defesa do Consumidor [6], o que denota também o reflexo das discussões da aplicação do Código aos serviços financeiros e bancários [7]. É Márcio Mello Casado que apresenta o ensaio sobre os princípios fundamentais de uma primeira análise do endividamento no Brasil [8] e Claudia Lima Marques a primeira pesquisa empírica [9] em casos de conciliação de dívidas de consumidores pessoas físicas, tendo por referência o modelo francês de renegociação em bloco com preservação do mínimo existencial. Denota-se que o tema não é embrionário, tem cerne estruturado em doutrina desde 1996, assunto amadurecido e comprovado.
Ao longo do período de quase uma década — com base a partir do protocolo legislativo do PLS 283/2012, em 2 de agosto de 2012, no Senado Federal, aprovado e encaminhado à Câmara dos Deputados, em 4 de novembro de 2015, com substitutivo PL 3.515/2015, que foi aprovado em 11 de maio de 2021 e novamente remetido ao Senado Federal como substitutivo no PL 1.805/2021, com aprovação em 9 de junho, de 2021 — foi sancionada a Lei nº 14.181, de 1 de julho do mesmo ano.
A atualização do Código de Defesa do Consumidor surge por meio da Lei nº 14.181, de 1 de julho de 2021. É de se considerar que desde a publicação do Código, em 1990, é o momento mais significativo do direito do consumidor brasileiro. Consolida-se uma prática acadêmica a partir de uma base teórica sólida, que estruturou a iniciativa legislativa e chegou à uma renovação cidadã. Tem-se um primeiro e estimado ganho que está na atualização da norma protetiva, tutela de prevenção. Os próximos passos exigem a implementação por meio de uma tutela de proteção, que reverbere em uma tutela de tratamento [10]. Um tempo tomado por uma economia do cuidado, crédito responsável, com desejo de se estabelecer uma cultura do pagamento. Para tanto, novas diretrizes, valores e princípios sustentam instituições e instrumentos para proteção dos consumidores (super)endividados.
A esperança materializada com a atualização do Código de Defesa do Consumidor encontrou-se refutada com a publicação do Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022, que entre outros pontos, definiu os parâmetros do mínimo existencial. Em uma ordem técnica, a definição do mínimo existencial é ponto essencial para aplicação da tutela aos superendividados. O artigo 54-A, § 1º, CDC, ao dispor sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, crédito responsável e educação financeira do consumidor, pontuou o conceito de superendividamento como a impossibilidade do consumidor de boa-fé pagar a totalidade de suas dívidas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação. Neste sentido, o conceito de superendividado é intrínseco à definição do mínimo existencial.
Ao mesmo passo, o consumidor superendividado tem no tratamento, seja na via conciliatória por meio do processo de repactuação de dívidas (primeira fase) ou no processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação de dívidas (segunda fase) a redação do plano de pagamento preservando o mínimo existencial.
A conclusão preliminar é elementar, o reconhecimento do mínimo existencial como valor de sobrevivência digna é o fator de efetividade da proteção do consumidor superendividado com projeção de recuperação de sua saúde financeira. Além disso, ao se identificar por referência a norma principiológica, a Lei 14.181/2021 trouxe ao Código de Defesa do Consumidor novos princípios ao direito do consumidor: a) princípio da educação ambiental; b) princípio da educação financeira; c) princípio da prevenção do superendividamento; d) princípio do tratamento do superendividamento; e) princípio do combate da exclusão social; e f) princípio da preservação do mínimo existencial.
Por certo, é possível relacionar que o mínimo existencial está para proteção do consumidor superendividado como a vulnerabilidade está para existência do Código de Defesa do Consumidor, ou seja, a razão do direito do consumidor é o reconhecimento da vulnerabilidade. Da mesma forma, para tutelar o consumidor superendividado, o mínimo existencial (preservação de) é o sentido basilar da existência da Lei 14.181/2021.
É de extrema importância, para efetivar a atualização do Código de Defesa do Consumidor, que o mínimo existencial contemple valor que garanta sobrevivência digna ao consumidor. O Decreto 11.150/2022 além de estabelecer valor inferior à linha da pobreza, desconsidera o Código de Defesa do Consumidor e afronta a Constituição Federal ao ignorar o dever de proteção imposto ao Estado (entenda-se Estado-Judiciário, Estado-Legislativo, Estado-Executivo) em promover a defesa do consumidor como um direito e garantia fundamental.
O artigo 3º, do Decreto em comento, ao elencar o mínimo existencial equivalente a 25% do salário mínimo vigente na data de sua publicação, transcreve que o consumidor é capaz de ter atendidas suas necessidades básicas com o valor de R$ 303. Como se não bastasse o ínfimo valor compreendido no Decreto, este é limitado à época da publicação, sendo que o § 2º, do mesmo artigo, descreve que o reajuste anual do salário mínimo não implica em atualização do valor do mínimo existencial.
A situação ainda se agrava quando o artigo 4º exclui na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas as parcelas das dívidas, entre outras, que sejam decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais; contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval; operação de crédito consignado regido por lei específica;
O Decreto 11.150/2022 não é uma tentativa de regulamentar o mínimo existencial apresentado pela Lei 14.181/2021, inserido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Código de Defesa do Consumidor, trata-se de uma manobra para esvaziar a efetividade da tutela aos consumidores superendividados, é um ato negacionista ao dever constitucional de proteção do Estado aos consumidores, é uma ordem atípica, descomprometida com a constitucionalidade e às normas-guias estruturadas como princípios.
Em uma releitura da obra Os Miseráveis, o destino dos consumidores superendividados é semelhante ao de Jean Valjean, muitos são desempregados e passam condenados, aprisionados à dí(vida). O mínimo existencial, ao ser definido na linha da miserabilidade, deixa de reconhecer a vulnerabilidade e revela o desamparo aos mais pobres. Não vejo outro enredo mais oportuno, quando o Poder Executivo, na exceção legislativa que lhe cabe, deixa de definir um mínimo digno para se viver e regula a miserabilidade existencial. Em uma passagem da clássica obra, aqui se transcreve: “certos pensamentos são como orações, há momentos em que, seja qual for a posição do corpo, a alma está, sempre, de joelhos”. Eis um sentimento para traduzir a vulnerabilidade do consumidor superendividado diante da regulada miserabilidade existencial.
[1] Minha homenagem ao ministro Antonio Herman Benjamin pela expressão reiterada em suas falas pela defesa dos consumidores superendividados.
[2] Weatherford, Jack. A História do Dinheiro. Rio de Janeiro: Ed. Negócio. 1999, p. 228 – 233.
[3] Apud em GELPI, Rosa Maria; LABRUYÈRE, François Julien. História do crédito ao consumo. Carlos Peres Sebastião e Silva (trad.) São João do Estoril-Cascais: Principia Publicações Universitárias e Científicas, 2000, p. 135.
[4] FERREIRA, Vitor Hugo do Amaral. Tutela de Efetividade no Direito do Consumidor Brasileiro: a tríade prevenção-proteção-tratamento revelada nas relações de crédito e consumo digital, publicado pela Thomson Reuters/Revista dos Tribunais. São Paulo, 2022.
[5] LOPES, José Reinaldo de Lima. Crédito ao consumo e superendividamento: uma problemática geral. Revista de Direito do Consumidor. nº 17. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 57-64.
[6] MARQUES, Claudia Lima. Os contratos de crédito na legislação brasileira de Proteção ao Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. nº 17. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 35-56; EFING, Antônio Carlos. Sistema Financeiro e Código do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. nº 17. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, p. 65-84. A Revista do Direito do Consumidor nº 17 é um marco histórico na doutrina brasileira sobre o tema.
[7] Em especial publicação em defesa da constitucionalidade do Código de Defesa do Consumidor ver MARQUES, Claudia Lima; ALMEIDA, João Baptista de; PFEIFFER, Roberto (coord.). Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos bancos: ADin 2.591. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006. A decisão da ADIN 2.591/2006 fez o Supremo Tribunal Federal declarar constitucional o artigo 3º, parágrafo 2º, do Código de Defesa do Consumidor, para aplicação aos contratos bancários, de crédito, financeiros e securitários. Nota-se que o efeito do da decisão judicial é a tutela de tratamento em grau de efetividade revelada.
[8] CASADO, Márcio Mello. Os princípios fundamentais como ponto de partida para uma primeira análise do sobre-endividamento no Brasil. Revista de Direito do Consumidor. nº 33. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 142.
[9] MARQUES, Claudia Lima. Sugestões para uma lei sobre o tratamento do superendividamento de pessoas físicas em contratos de crédito ao consumo: proposições com base em pesquisa empírica de 100 casos no Rio Grande do Sul. Revista de Direito do Consumidor. vol. 55. São Paulo, 2005.
[10] FERREIRA, Vitor Hugo do Amaral. Tutela de Efetividade no Direito do Consumidor Brasileiro: a tríade prevenção-proteção-tratamento revelada nas relações de crédito e consumo digital, publicado pela Thomson Reuters/Revista dos Tribunais. São Paulo, 2022.
Vitor Hugo do Amaral Ferreira é doutor em Direito (ênfase em Direito do Consumidor e Concorrencial) pela UFRGS, professor universitário, coordenador do Centro de Prevenção e Tratamento do Superendividamento do Consumidor, na Universidade Franciscana (UFN), diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BrasilCon), conselheiro titular do Fundo Gestor de Direitos Difusos do Ministério da Justiça e conselheiro da Escola Superior de Direito do Consumidor, do Estado do Rio Grande do Sul (ESDC).
Revista Consultor Jurídico